segunda-feira, 19 de março de 2007

Crónicas do Autocarro 50 (I)

Tudo começou no momento em que decidi aproveitar a belíssima tarde que esteve aqui em Lisboa neste último sábado para passear no Parque das Nações. Foi assim que me encontrei sentado na parte traseira do Autocarro 50 com destino à Gare do Oriente, onde a acção principal desta crónica se desenrola.

Antes de mais, um pequeno aparte. Para quem não conhece, o Autocarro 50 da Carris atravessa a cidade de uma ponta à outra (de Algés ao Parque das Nações) sem nunca entrar no centro da cidade, e é lendário pelo facto de ser um palco privilegiado para a ocorrência dos episódios mais bizarros. As histórias do Autocarro 50 são quase um mito urbano e quem o utiliza assiste diariamente ao renovar da lenda. Mas voltando à história ...

No banco em frente ao meu, face a face, sentaram-se dois homens jovens, qualquer um deles com menos de 30 anos: um alto e muito magro, com uma camisa de meia-manga branca, calças de caqui, olhos esbugalhados e cheio de tiques nervosos; outro mais baixo e atarracado, com um fato de treino cinzento, bolsinha do Benfica pendurada ao pescoço, cara de cachorrinho triste e olhar perdido no infinito. "Só falta mesmo o casaquinho de pele de vaca para completar o quadro", pensei eu, lembrando-me de imediato do Tóni e do Zézé da Conversa da Treta. Mal sabia eu o que me esperava ...

Tipo do Fato de Treino: Amanhã tomo banho. (pausa) Tomei hoje de manhã ... e amanhã de manhã tomo outro.
Tipo da Camisa Branca: Ah ... eu não, troco só de camisa.
TFT: (depois de uma pequena pausa a olhar para o infinito) Eu não tarda já ando de calções! Até já disse à minha mãe e tudo.
TCB: (entre tiques nervosos) Pois ...
TCB: (depois de uma pausa quase salta do lugar a apontar pela janela) Olha, olha, é naquele prédio ali que mora o Ricardo.
TFT: Qual?
TCB: (ao mesmo tempo que apontava meio para a rua, meio para o céu) Então não estás a ver, aquele ali!
TFT: Ahhh ...
TCB: Da próxima vez que viermos a Lisboa vamos visitá-lo.
TFT: E podemos vir de comboio?
TCB: O quê?
TFT: Quando o viermos visitar vimos de comboio e leva-mo-lo a comer uma pizza. Ele gosta de pizza.
TCB: De comboio? (encolhe os ombros) Pfft ... então já não venho!
TFT: (depois de nova pausa a olhar para o infinito, aponta para o braço do outro) Olha lá, o teu relógio?
TCB: (agarrando o braço em causa com a outra mão) Não trouxe!
TFT: Então?
TCB: Arranca-me os pelos todos do braço!
TFT: Então, tu tens é de arranjar uma bracelete como a do meu (revelando o seu relógio do Benfica, com uma bracelete castanha suficientemente comprida para dar duas voltas ao pulso)
TCB: Pois. (pausa) O Pedro é que tem um em casa que não usa. (mais tiques nervosos) Quem me dera a mim!
TFT: Então mas fala com ele!
TCB: Pois ...

À nossa volta, várias pessoas riam-se à socapa e muitas outras faziam um esforço tremendo para não se desmancharem a rir. Junto ao Hipódromo no Campo Grande continua a conversa:

TCB: Olha! Olha! É aquele sítio dos cavalos! (desta vez salta mesmo do lugar a apontar pela janela)
TFT: Ah, pois é.
TCB: É aqui que a tua sobrinha anda, não é?
TFT: Não. Aqui só fazem saltos e ela só anda no ... como é que se chama? Aquela coisa em que eles andam à volta!
TCB: O picadeiro!?
TFT: Isso! Mas não é aqui, é lá para os lados de ... (longa pausa a olhar o infinito) ... é em Caneças.
TCB: Caneças?
TFT: Sim.
TCB: Eu já tive em Caneças! (meio exaltado) E não vi lá nenhuns cavalos!
TFT: Pois ... mas é em Caneças.
TCB: Hupf ... (pausa) então mas ela não faz saltos lá?
TFT: Não. Ela andava mas tinha medo dos saltos, e então desistiu.
TCB: Não entendo! Então se ela sabe andar, saltar deve é fácil. Não percebo porque é que ela desistiu!
TFT: Pois ...
TFT: (depois de mais uma pausa) Olha, vou ligar ao Ricardo!

E abre a bolsa que trazia pendurada ao pescoço, de onde tira um telemóvel antigo e uma velha agenda telefónica. O número não devia estar memorizado porque ele demora um bom bocado de volta da agenda. Por fim lá consegue fazer a chamada, mas não antes de se enganar uma vez no número:

TFT: Estou sim?
(...)
TFT: Estou a falar com quem?
(...)
TFT: Ahh, daqui é o João! (vira-se para o outro) É a mãe do Ricardo!
(...)
TFT: Pois, nós viemos cá almoçar. Comemos pizza!
(...)
TFT: Nós éramos para ir visitar o Ricardo mas como ele estava doente nós tivemos medo de apanhar ... enfim, alguma coisa.
(...)
TFT: Pois, mas nós tivemos medo de apanhar alguma coisa, e isso agora não dava muito jeito.
(...)
TFT: Pois, está bem, mas tivemos medo de apanhar alguma coisa.
(...)
TFT: (enquanto fazia um esgar de riso e olhava para o outro) Olhe, o Luís Carlos está a mandar cumprimentos! (o outro reage fazendo uma série de caretas e movimentos estranhos com as mãos no ar)
(...)
TFT: Pois ...
TCB: (em surdina) Acaba lá com isso que já estás a demorar muito.
TFT: Olhe, agora tenho de ir! Da próxima nós vamos aí visitar o Ricardo! (e após as despedidas da praxe desligou o telefone, ficando os dois a rir-se um para o outro)

Por esta altura já toda a gente à nossa volta se havia desmanchado a rir excepto eu e o meu pai (que eu tinha convencido a acompanhar-me e que estava sentado ao meu lado), que fazíamos um esforço tremendo para não nos rirmos porque estávamos sentados mesmo ali à frente deles.

Diz-me o meu pai que a conversa continuou nos mesmos moldes, mas eu já não registei mais nada porque a minha atenção foi desviada por um burburinho vindo da parte da frente do autocarro. Primeiro, surgiu uma mulher baixa e bastante gorda, talvez com uns 50 anos, cabelo espetado pintado de loiro e vestindo um casaco branco enorme que a fazia parecer um urso polar, e logo atrás um homem de óculos também para o gordinho, talvez um pouco mais novo que ela e vestindo uma camisa cinzenta aos quadrados:

Mulher: Já não há respeito! Já não há respeito!
Homem: Mas eu conheço-a de algum lado!? Cale-se mulher!
M: Parvalhão! (senta-se a dois lugares de distância de mim, o único lugar que havia disponível, e continua) Seu parvalhão!
H: Não percebo porque é que você se sentou aí! Esse lugar é meu! Você é que se meteu à minha frente e entrou primeiro! Esse lugar é meu! Você não tinha nada que se sentar aí!
M: (começando a rir-se que nem uma galinha) Seu palerma! Palhaço! Caixa de óculos!
H: Você já vai ver! É só chegarmos ao Parque das Nações e a gente já acerta as contas! Solto-lhe os cães!
M: Parvalhão! Dou-lhe uma cacetada nessa tromba que lhe parto os óculos, seu palhaço! Caixa de óculos!
H: Só se for com um chicote! Só se for com um chicote!
M: Seu parvalhão! Seu palhaço!
H: Sua frustrada! Eu parto-lhe mas é a ****! Frustrada!
M: (depois de mais uns insultos e com o punho cerrado no ar em jeito de ameaça) A gente já acerta contas lá fora!

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PS: 10 minutos depois de sair do autocarro eu ainda não tinha conseguido parar de rir e acabei eu também por passar por maluco depois de começar a rir às gargalhadas sem motivo aparente em pleno Centro Comercial Vasco da Gama.

3 Comentário(s):

Célia disse...

Sim senhor... Que bela viagem, e que belos cromos :)

Gato das Botas disse...

Assim contado não é possível fazer-lhes jus. Só mesmo ao vivo e a cores. :)

Daniel Santos disse...

ehehehehe, mas que viagem! Fantástico esse autocarro 50! :o)